segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Revolvendo a memória e ascendendo às consciências - texto crítico de Walter Lima Torres sobre "A Saga no Sertão da Farinha Podre"

*Crítica referênte à apresentação do espetáculo no V FESTCAMP - Festival Nacional de Teatro de Campo Grande

O Coletivo da Margem (CTM) de Uberlândia, liderado e dirigido por Narciso Telles, trouxe ao FESTCAMP a sua primeira incursão pelo universo do teatro de rua. Trata-se de um espetáculo arrojado que na sua forma faz apelo a matrizes populares da nossa cultura onde se mesclam a assimilação do importado e a cultura religiosa. As alusões ao popular estão desde os figurinos com suas cabeças-caveiras-de-boi até a malhação do Judas; o comportamento do bloco do sujo; o Trenzinho Caipira de Villa Lobos; etc.


Quanto à narrativa propriamente, o coletivo se atém ao fragmento, onde cada momento da ação cênica transcorre de maneira autônoma, entre as partes, num espaço específico dentro da Praça do Radio, no coração da cidade.

O ponto de partida do espetáculo é a apresentação de uma versão para peça de Sófocles, Antígona, anunciada pelo “bloco de sujo” com suas faces cobertas por máscaras de carnaval. O verdadeiro rosto do ator é revelado quando os mesmos retiram a mascara e se apresentam, informando seu nome e o personagem que irá representar ao tomar parte na adaptação da peça grega. E nesse exercício de revelação da própria identidade de cada integrante, e por que não dizer da revelação da precariedade desses improvisadores-fazedores de teatro, eles informam ainda os seus números de CPF. Essa atitude revela uma espécie de reivindicação ao fato de que o ato teatral também é um ato de cidadania, que combate a tirania e revela as desigualdades. E neste caso, brevemente, a tirania é representada por Creonte, o “ditador” que se opõem aos rituais de sepultamento para o corpo de Polinices realizados por Antígona. 

Logo depois será substituído por um outro tirano. A “Tia” traveca, imperialista e ariana, calçando coturnos e de chicote na mão, com visual Dzi-Croquete, que se põem a sufocar o arcaico, dando inicio ao seu circo pós-brega com direito a desfile de moças selecionadas onde o outro, o diferente, não tem lugar e é excluído.

Esta ação cênica inicial, realizada pelo Coletivo da Margem (CTM), a qual não deixa de traduzir um conflito, é só uma espécie de apresentação dos conflitos que se desdobrarão, sempre de forma alegórica incitando o transeunte desavisado a refletir sobre sua própria condição de oprimido pelas mais diversas manifestações de controle exercidas, sobretudo pelas “figuras utópicas que representam a cidade ideal”, como não deixa de afirmar a sinopse do espetáculo. 

O Coletivo da Margem (CTM) parece ter elaborado sua prévia pesquisa de campo, para realização do espetáculo, entorno dos problemas existenciais e dos conflitos sociais atinentes à própria cidade de Uberlândia, entretanto percebe-se que o “sertão da farinha podre”, e, sobretudo “a farinha podre”, pode estar por toda parte espraiada, por diversas cidades. E o pior é que nem sempre conseguimos enxergar essas violências perpetradas pela manifestação do poder e da ordem, e sem querer somos até coniventes na nossa alienação involuntária. Essas violências ganham formatos edulcorados, perucas louras, modos subliminares, para manifestarem ainda hoje com indelével desfaçatez a violência da exclusão. Sobretudo se pensarmos as relações sedimentadas pelo princípio do “homem cordial” enraizada nas nossas relações sociais. E nesse sentido, de forma alegórica o Coletivo da Margem (CTM) aborda o preconceito racial; a violência contra as mulheres; a tirania dos detentores do poder; a necessidade de criarmos santos e mitos, etc.

Grande parte do teatro realizado nos anos 1960 e 1970, no Brasil, esteve dedicada a manifestar o seu protesto contra um regime ditatorial, totalitário que havia suprimido as instancias de debate público e a liberdade de expressão do cidadão. Hoje as regras do jogo parecem ter mudado e respiramos ares democráticos, e o cidadão nunca teve tantos meios de expressão à sua mão. Porém em nossas cidades, em nosso país e pelo mundo afora persiste o conflito entre valores arcaicos e valores contemporâneos. Há um choque cultural permanente. Esse choque pode ser percebido ao dobrarmos a esquina de qualquer cidade brasileira, aonde vamos tropeçando nessas realidades, que apesar de suas mazelas estão repletas de memórias e poesia.

Essa memória e essa poesia é que nos foi sugerida pelo trabalho do Coletivo da Margem (CTM) que alude sem afirmar, que indica sem determinar, pois ao optar por imagens metafóricas convida o transeunte espectador a meditar sobre seu próprio comportamento e as relações numa sociedade contemporânea que se teatraliza, ela própria, mascarando as relações de poder e afetividade, para não citarmos outras esferas relacionais.

É emblemática a ação cênica numa das cenas finais, a da cantiga popular infantil sobre Terezinha de Jesus e seus três Cavalheiros. Ressignificando o sentido da canção, o Coletivo da Margem (CTM) chama atenção para violência silenciada pela moral e pelo peso do ambiente social. E ainda operando com o principio alegórico, os “Judas” de um “Sábado de Aleluia” que estão pendurados pelas árvores da Praça do Rádio, personificam, neste momento a “perdida” Terezinha. Trata-se da personificação de um princípio, o do feminino; a personificação de uma idéia, a idéia do Outro: que três vezes é violentado e ultrajado indo ao chão; a mulher que três vezes é castigada por Pai, Irmão e Marido; a voz que três vezes é silenciada, pela família e por aquele terceiro, a quem a Terezinha da cantiga não teve outra escolha senão também lhe dar a mão.

Walter Lima Torres
Crítico Teatral

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