sábado, 14 de fevereiro de 2009


CANOEIROS DA ALMA
Comentário de Antonio Carlos Brunet (Dunga)


Coletivo Teatro da Margem, grupo formado por alunos e egressos do curso de Teatro, da Universidade Federal de Uberlândia, sob a direção de Narciso Telles, nos proporciona uma experiência gratificante com o espetáculo ‘Canoeiros da Alma’. O trabalho é o resultado de uma pesquisa sobre o universo dos moradores às margens do rio, no Vale do Jequitinhonha.
O primeiro ponto favorável ao espetáculo é a concretização da difícil transposição da realidade ribeirinha para o palco, que ganha contornos oníricos, através de uma leitura muito particular do grupo e direção, sintetizando forma e conteúdo com rápidas inserções, como flashes a formar um painel denso, poético e afetuoso do e sobre o universo em questão.
Não se estabelece uma narrativa linear, convencional e cronológica, assim como não há a preocupação e contar uma história via dramaturgia tradicional. Os fatos são narrados através de, basicamente, ações, que se bastam por si próprias, definindo ludicamente o espaço onde os atores/personagens se inserem. Há poucas intervenções de palavras, e, quando estas aparecem, demonstram a dificuldade dos jovens atores para dominá-las, o que é uma característica da nova geração e, uma fragilidade da academia contemporânea, que foca seu trabalho na preparação corporal do ator, esquecendo que língua também é músculo, e como tal, necessita estar em atividade constante para não atrofiar. Porém, sabiamente, a direção não força a mão neste rumo, sendo evidente seu foco, outro, de trabalho: o que é bem realizado.
Percebe-se claramente que o espetáculo inicia pelas beiradas (literalmente) do tema e do rio. Inserções do cotidiano do universo investigado são mostradas, como a mesa do jogo de truco, o velório, a religiosidade e são ouvidos cânticos de louvor a Deus, canções de candomblé, pontos de umbanda, cantigas folclóricas e de trabalho, que deságuam natural e tranqüilamente à beira, aí sim, do rio, onde acontece a seqüência cinematográfica das lavadeiras. Esta cena é uma longa exposição que ocupa, provavelmente, um terço do tempo do espetáculo, onde estas mulheres lindas e sensuais, sob o manto velado do sacrifício e glória do seu dia-a-dia, lavam trouxas de roupas e panos que são esfregados, torcidos, batidos, surrados, ora cantando, ora em silêncio pungente, como que a exorcizar o peso da dor e da miséria que as oprime. Após o dever cumprido, o banho regenerador. Uma cena de beleza pungente, onde todas, em fila, silenciosas, vencidas pelo cansaço, banham-se finalizando suas atividades. O silêncio é preenchido pelo rumor hipnótico da água que lambe seus corpos, com lascívia, como um bálsamo escorrendo pelo chão, liberando-as de todas as mazelas do mundo.
Subitamente, da harmonia estabelecida, instaura-se o caos. Uma festa imodesta, surreal ‘rave’ nos arrebata e nos situa temporalmente na ação. A globalização (palavra mais nojenta) não leva livre nem as margens do rio. Um verdadeiro mercado persa se estabelece: camelôs, vendedores de sacolé, fanáticos religiosos, bêbados, hippies e ripongas surgem como que brotados das profundezas do rio, a entoar seus pregões e discursos. Chuvas de moedas introduzem o personagem da Velha Índia que, bucólica, recorda o tempo em que as invasões bárbaras ainda estavam no início, quando tudo foi vilipendiado pela presença do garimpo, abrindo espaço para que a água, em forma de gelo assuma, metaforicamente a condição de pedras preciosas que deslizam pelo palco, como diamantes a saciar a sede e a ganância daqueles que as perseguem. Os diamantes em questão, não são eternos. Eles derretem e se esvaem por entre os dedos daqueles que os cobiçam. Tudo retorna à água.
Tudo volta, em ciclos, para o rio. Todos, como que em transe, exauridos, isolam-se, introspectivos, a ruminar, a remoer, a tartamudear compungidos ladainhas imperceptíveis, em busca de paz de espírito perdida, um consolo, um abrigo no seio da religiosidade a qual viraram as costas.
O epílogo é desconectado do geral do espetáculo – que até então trata de expor a comunidade como um todo -, e passa a mostrar uma história particularizada, de um personagem que abandona a esposa, que passa a viver com a cunhada. Estes personagens rodriguianos observam, através de uma moldura de quadro (ou janela), ora um, ora outro, ora os dois em suas diferentes configurações, todo o espetáculo, como uma costura onipresente. A inserção destes à história é forçada, pelo fato dos mesmos serem psicologizados, dentro de uma estrutura de representação.
O espetáculo transita num registro instigante, beirando, às vezes, ao incômodo. Ele é envolvente, embora apresentado dentro de um espaço com características de palco italiano, o que não é sua proposta primeira. A mim encanta sua ‘sujeira’, tanto a física quanto a estética, com cenas simultâneas, descontroles emocionais, arroubos vocais, exageros de interpretação, contrastando com momentos de extremo lirismo e delicadeza.
O elenco é bastante coeso, superando suas deficiências técnicas com ‘garra’ e desejo de superação. Sente-se que os atores estão todos muito bem inseridos na proposta da direção, deixando evidente o claro entendimento da mesma.
Creio ser da maior importância, para a cidade, um grupo que busca propostas diferenciadas do fazer teatral, destacando-se, assim, da mesmice do bom-mocismo e do politicamente correto que, via de regra, grassa nossas produções. Há que se ter espaço para todos os estilos de manifestações teatrais. Afinal, estamos numa das raras cidades do interior do país, privilegiada com um curso universitário, de teatro - local extremamente propício e adequado a experimentações e pesquisa. E, é muito agradável quando se percebe que, após o período de investigação e do processo de transposição, temos aos nossos olhos um resultado extremamente satisfatório como o conseguido pelo grupo e questão, levando-nos a ter confiança de que nem tudo está perdido.


Direção – Narciso Telles
Elenco – Adriana Moreira, Afonso Mansueto, Camila Tiago, Jhonatan Rios, Lucas Dilan, Marcela Prado, Nádia Yoshi, Priscilla Bello, Samuel Giacomelli, Alba Jacobina.

Nenhum comentário: